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A peça “Divino Maravilhoso” tem como herói um rapaz de Irecê que, entre o fim dos anos 60 e anos 70, parte do sertão com destino ao mar e, a partir de sua travessia, relembramos os grandes emblemas culturais dessa época. Por que a montagem seria tão atual e traria tamanha identificação com as juventudes, se recupera um tempo não vivido? Dirigido por Paulo Atto, resultado de sua segunda turma no curso livre do Núcleo Caatinga, a peça vai além de um relato nostálgico sobre a experiência artística dos anos 70 e coloca a questão sobre o sentido da migração hoje, com atuações de Robério Souza, Mozar Primo, Vanessa Dourado, João Mendes, Mariana Dourado, Duda Oliveira, Israiane Alves e Gisele Silva.
Ao acompanhar a trajetória de um jovem sonhador que deixa Irecê rumo à capital baiana, seduzido pelo chamado da contracultura e do tropicalismo que então explodia nos palcos e nas ruas, evidencia-se o arquétipo dessa jornada: o êxodo rural como rito de passagem, a cidade grande como território de iniciação artística. Mas o que era, nos anos 70, uma narrativa quase obrigatória, um movimento geográfico de toda cabeça moça que busca expandir-se, hoje se transformou em uma aventura simbólica, neste período em que uma cidade como Irecê se torna urbana o bastante para fomentar sua própria efervescência jovem.
Já não é mais um imperativo ver jovens artistas abandonando sua terra natal em massa, como se a "cidade grande" fosse o único palco possível. O interior se recria com coletivos independentes, festivais regionais, uma cena cultural que se alimenta justamente do cruzamento entre raízes locais e linguagens cosmopolitas. Se nos anos 90 o movimento manguebeat, herdeiro cultural do tropicalismo retratado por “Divino Maravilhoso”, gritava com Chico Science que eles mantinham as antenas parabólicas fincadas na lama do Recife, em referência a uma possibilidade de autonomia frente ao eixo nacional, um rapaz ireceense pode dizer que o seu modem também é forte entre as barrigudas e os mandacarus. Oh, Santa Monica, Tennessee, o Pink Poney Club é logo ali na Primeiro de Janeiro...
Talvez a identificação jovem esteja justamente nesse contraponto: a peça nos faz olhar para o arquétipo, para a questão necessária quanto ao migrar ou não migrar, e põe a possibilidade de sermos partes desde já desse grande movimento global.
O espetáculo captura o choque de mundos que ainda está aqui, a vocação agrícola, a sabedoria popular, a palma sendo cortada pelas próprias mãos, e o ritmo metropolitano, a conexão rodoviária. Em cena, como cenário simbólico, o herói ireceense se vê diante de um recital que é quase um portal dimensional: performances poéticas cortantes, harmonias dissonantes, corpos que dançam livres, longe do ciclo fechado passado de pai para filho, de propriedade e família na sua cidade natal. A famosa linha "This is the dawning of the Age of Aquarius", cantada em tom quase profético, deixa de ser apenas uma referência ao musical Hair, e se torna o anúncio de um novo código de existência está sendo implantado, de uma nova ordem de comportamentos. E o protagonista, entre o êxtase e o desamparo, percebe que não há volta: aquela experiência o desmontou e remontou em outra chave. Também nós já vimos o deslumbre da "Nova Era" e não vamos mais retornar. Irecê se moderniza, sem volta, e assimila seus potenciais múltiplos em torno de sua nova velocidade, como uma antropofagia do Modernismo exibido.
O que a peça faz é traçar um paralelo entre aquela ebulição dos anos 70 e o modernismo próprio que hoje vive Irecê. A cidade, antes conhecida quase exclusivamente por sua força agrícola, cada vez mais tem no seu comércio, na sua estrutura de serviços e nas suas estruturas privadas e públicas uma combinação de elementos para a reinvenção de si. Podemos cantar com Caetano Veloso: "Vamo comer, vamo comer feijão, vamo comer, vamo comer farinha... Vamo comer canção, Vamo comer, Vamo comer poesia" Sua arte não nega o chão que a sustenta – pelo contrário, bebe da caatinga, do sertão, dos causos tradicionais – mas os traduz em linguagens de vanguardas.
Quando o herói da jornada de "Divino Maravilhoso" reconhece a profecia de seu pai ao fim, de que ele não retornará mais ao sertão depois de conhecer a vida da cidade grande, não ouvimos como se tivéssemos nos anos 70, de que o fatalismo do jovem interiorano que queira expandir-se seria sair para a metrópole. Compreendemos que o herói, ao ser deslumbrado por todas as maravilhas que formam culturas, artes e comportamentos, não podem regressar a um ponto zero. Estamos atravessados por essa correlação de forças já aqui, a BA-052 já está interligada com as tendências de um novo ritmo. Assim, no sarau performático da peça, o rapaz ireceense declama como desfecho e é ovacionado. Bem-vindo!