As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Irecê Notícias. Os conteúdos apresentados na seção de Opinião são pessoais e podem abordar uma variedade de pontos de vista.
Mais um ano, mais um Enem, mais uma maratona de redações que prometem mudar o mundo – ou pelo menos tentar. E este ano o tema não decepcionou: "Os desafios para a valorização da herança africana no Brasil". Nada mais justo, diga-se de passagem, já que essa herança é uma daquelas peças que montam o quebra-cabeça chamado “identidade nacional brasileira”.
Mas, como já era de se esperar, o debate tomou os mesmos atalhos de sempre nas redes sociais. De um lado, gente que aplaude o protagonismo das questões negras no cenário educacional, levantando a bandeira da inclusão com fervor. Do outro, os tradicionais opositores, preocupados que a “ideologia” esteja corroendo as “raízes cristãs” do Brasil. E no meio desse fuzuê, temos os jovens candidatos, se contorcendo para dar forma a uma redação digna, tentando equilibrar complexidade e profundidade, enquanto o relógio insiste em correr mais rápido que seus pensamentos.
A verdade é que nossa velha questão racial continua sendo um verdadeiro bicho de sete cabeças. Por que é tão difícil falar sobre a escravidão e o racismo sem causar uma tempestade emocional e ideológica? E mais: por que ainda é um “choque” para tantos brasileiros reconhecer a contribuição africana para quem somos hoje? A história está aí, nos livros, nos documentos e até nas salas de aula, onde a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira é uma tentativa de reverter décadas de invisibilidade. Mas ainda falta aquele empurrãozinho: mais engajamento, menos tabu, mais vontade de desenterrar histórias que preferíamos esquecer.
Como já dizia Fernando Pessoa – com a licença poética para nosso contexto –, "Somos feitos de muitas coisas, algumas belas, outras nem tanto". E valorizar a herança africana não é apenas recitar datas e heróis; é questionar valores, repensar preconceitos. E aí, uma peça essencial do quebra-cabeça é o conceito de “pretuguês” da icônica Lélia Gonzalez. Segundo ela, o português que falamos aqui é único porque carrega o sotaque, o ritmo e a alma africana. Quando assumimos que o nosso português é, na verdade, uma mistura viva, estamos reconhecendo nossa pluralidade linguística e cultural. É “pretuguês” – um samba da língua portuguesa com um gingado todo nosso.
A língua é só um dos muitos presentes que essa herança africana nos deixou. Religiões, músicas, culinária, modos de ver o mundo – tudo isso faz parte da nossa cara brasileira. E não adianta tentar varrer para debaixo do tapete a importância disso, nem fingir que o racismo estrutural que resiste ao tempo vai desaparecer com um passe de mágica. Precisamos, sim, de uma sociedade em que igualdade e justiça não sejam apenas sonhos, mas realidades palpáveis para todos.
O Enem vem e vai, mas ele deixa sempre uma pulga atrás da orelha, uma sementinha de reflexão para a sociedade. Que esse debate não se perca no tempo, e que a valorização da nossa história seja o combustível para um futuro mais justo e inclusivo. Porque, no fim das contas, somos todos um pouco desse mosaico colorido e, convenhamos, é essa diversidade que dá graça ao espetáculo.
*Chal Emedrón, pseudônimo de Carlos Medeiros, licenciado em Letras pela Universidade Federal da Bahia, apaixonado por cultura pop e comportamento humano.